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Sinopse

Corria o Verão de 2004 e Portugal estava em festa. Pelos vidros víamos o país a arder, na rádio ouvíamos o relato de futebol, a crise tocava à porta, rasgava-nos o orgulho. Pedófilos escondiam-se nas cadeiras do parlamento, Portugal ganhava à Espanha. O amor também lá estava, nesse verão e continuava a arder como a mata. Quem tivesse vindo de fora, passeando pelas ruas, talvez tivesse encontrado um sentido para aquele ano de estudo em Madrid: que sentido se seguia após a queda dos paradigmas, após a ascensão das micro narrativas? Mas havia um sentido. Realmente, há sempre. A verdade é que cada um de nós tinha o seu ponto interrompido na cadeia. Cada um ter-se-ia alguma vez perguntado: como continuar? Como continuar depois da Primeira, da Segunda e da Terceira Guerra Pessoal. Cada um dizia para si: esquecer a fragmentação, reencontrar a totalidade. Estavamos todos ligados à máquina e morrer era, em boa verdade, impossível. Só havia uma coisa a fazer e ninguém sabia bem como, mas era preciso continuar e escrever a história.

História do projecto

Este texto foi escrito quase na totalidade numa viagem entre Porto e Lisboa durante o Verão de 2004. Tinha acabado de chegar de Madrid, onde entre outras coisas acabei por me interessar pelas quebras das narrativas de Lyotard nos estudos sobre a pós-modernidade. Quando cheguei o país estava a arder como habitualmente. Por todo o lado se ouvia falar em futebol e eu própria acabei por aderir à estranha festa que decorria na rua: entre um nada luso nacionalismo que me contagiava e a livre queda social e económica com que me deparei em Portugal. A mistura implodiu-me.

Assumindo-se como um projecto para spoken word, este trabalho foi apresentado pela primeira vez em Dezembro de 2005 no espaço da Black Box, em Lisboa.

O que é "As pessoas já não dão beijos na rua"?

É um texto dramático que encerra em si a ideia de uma individualidade que se multiplica, criando uma espécie de voz “colectiva”. Nesse sentido, não posso exactamente precisar se se trata de um monólogo ou não, deixando as duas hipóteses igualmente em aberto. O texto refere-se à “ruptura” e “continuidade” de uma persona, que é individual/psicológica e, ao mesmo tempo, colectiva/social. Se o palco está vazio, se não há palco, não é coincidência que este seja um texto para um espectáculo de base teatral: é que o teatro é sempre a arena desta condição simultaneamente individual e colectiva. No tempo da des-substancialização do ser, esta proposta é uma ironia teatral, mas não faz mal, porque este é um tempo de perplexas contraditoriedades. Como se verá, a pergunta fundamental será sempre: “Como continuar?”. Como fazer, a partir de uma fragmentação micro e macro histórica, uma linearidade fundamental ao caminho.

1

A
Agora conta-me uma história.

A2
Não consigo.

A
Uma que tenha introdução, desenvolvimento e conclusão.

A2
Sinto muito, perdi a continuidade.

A
E que tenha personagens e alteridade.

A2
Agora só tenho uma identidade ampliada, posso desdobrar o corpo, o espaço-tempo e a narrativa, mas como vês estou só, “tenho uma pérola no coração e ninguém a quem a deixar”. O palco está vazio e os actores foram para a televisão. Não há heróis para aplaudir e eu não quero existir, porque é muito mais seguro ser uma gravação de mim mesma.

2

A1.
Faz de conta que vinha aí um camião e que várias pessoas o conduziam e levavam com elas a estória certa por linhas tortas e não tinham atenção porque estavam bêbadas e fizeram uma coisa sem consciência, que resultou ser o grande acidente de que ninguém fala e todos sentem na metade perdida do pulmão e nas pernas que estão partidas. Faz de conta que a maldade era de uma espécie infantil, sem lógica além da destruição e do medo de que não houvesse suficiente comida para todos. Viver era uma coisa deste género e agora já não há bailes e a partir de certa idade…


A2.1
…as pessoas já não dão beijos na rua.

3

Um rapaz que queria ir estudar e vivia numa aldeia foi para uma grande cidade trabalhar numa mercearia, porque a família não tinha dinheiro para lhe pagar os estudos. Daí costumava ver as raparigas da classe média que iam para a escola e constituíam, assim, duplos objectos de desejo. Estas raparigas tinham tranças e usavam meias pelo joelho, mesmo no Inverno. Mas eram raparigas intocáveis, o que aos catorze anos é um conceito difícil de aprender. Quando cresceu, conheceu uma dessas raparigas que quis casar-se com ele, mas não a amava – amava-a aos catorze anos. Mas a memória extinguiu-se, assim como os beijos e lentamente só ficaram palavras que eram ácidas como resíduos tóxicos da impossibilidade antiga, a qual ninguém conhecia, nem sequer ele próprio, mas existia – na continuidade da História.

4

A
Que é feito do teu país?

A2
Está aqui e tu habitas nele. É o nosso jardim de couves.

A
O que é que esperas de tudo isto?

A2
Espero uma pragmática idealista no poder.

A
Qual é o sentido da tua fragmentação?

A2
É o sentido único.

A
Tens alguma coerência?

A2
Não. Sim.

A
És uma unidade ou uma insustentável ruptura?

A2
Eu sou uma única pluralidade rota. Mas eu agora estou em mim assim como nas minhas flutuações: como tu. Tu e eu somos UMA POLÍTICA PESSOAL. Mas já não estamos juntos, já não nos beijamos como antigamente. Tu já não gritas comigo, agora atravessas o passeio, e eu fecho-me cada vez mais em casa. Estamos para lá da moral, onde todo o terreno é inclinado e já não há casas aqui.

5

“Primeiro há que saber amar, depois sofrer, depois partir, e por fim andar sem pensamento”.

6

No dia 21 de Junho de 2004 Portugal jogou contra a Espanha. Eu vi o jogo e acendi uma vela para a vitória. Na bancada havia um homem que segurava uma faixa que dizia “Eu acredito”, o que tinha muita graça. Os espanhóis fartaram-se de dar caneladas, o árbitro roubou-nos e o jogo foi tenso. Mas também é preciso dizer que os portugueses corriam pouco e, pela minha prática teatral quase me atrevo a dizer que lhes faltou algum "impulso" no momento do golo, no momento de fazer a decisiva jogada. Mais ou menos a meio, o capitão da equipa foi substituído, o que foi aplaudido pela bancada nacional. E a minha amiga comentava “Temos muito bons jogadores, mas falta-lhes organização e o treinador toma estranhas medidas”. Naquela altura tudo me pareceu uma excelente metáfora.

7

A2
Mas tu, meu amor, não voltaste nunca.

A2.1
Mas não penses que vou ficar aqui a cantar o fado de Coimbra.

B5
Sou uma mulher. O meu fado não é servir. O meu fado é criar.

Acerca de mim

A minha foto
Portugal, verão quente de 75. Já não sei quantos dentes tenho, mas continuo a calçar o 37. Ainda pertenço à minha gata, apenas, mas já não confundo o "há" do tempo (o tempo tornou-se finalmente tangível). Sou simples, o melhor chega-me perfeitamente, etc. Estou aqui. Estou mesmo aqui.